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À Crase


Autor: Antônio João Fidélis

Um amigo meu é como a crase: se tem feminino no ambiente, ele precede. Quando aparece uma mulher onde ele se encontra, tenha certeza que o primeiro “não”, e às vezes “sim”, é pra ele. Fissurado, viciado, dependente, compenetrado… Mulher está na mira dele. Os amigos, e esses sim são AMIGOS de verdade, brincam dizendo que se arrependem de ter-lhe apresentado a esposa/noiva/namorada, pois ele fica secando-as até que fiquem mais seca que o Sol. Não, não é “no Sol”, é como “o Sol” mesmo. A minha noiva, à época, chegou a emagrecer uns quatro quilos quando foi apresentada a ele. E voltando à devida oração, são amigos de verdade porque não é qualquer um que aceitar ter um amigo assim.

Dias atrás, quando saí para tomar um café da tarde com esse amigo, estava passando os olhos pelo ambiente quando subitamente me vi preso ao noticiário, daqueles que o jornalista fala e tem duas linhas no pé da tela, uma fixa resumindo a fala do âncora e outra móvel com o resumo dos resumos das notícias. Havia uma crase lá. Ela estava no lugar adequado. Foi um momento de êxtase. Não sou viciado em crases como meu amigo é viciado em fitar mulheres, mas um português bem escrito rouba meu coração. Da notícia, do canal, do assunto, nada, não lembro de absolutamente nada. Mas aquela crase. Que crase! Dei um sorriso de soslaio, mas ninguém viu. Obviamente meu amigo também não viu. Havia mulheres na cafeteria.

Um transeunte qualquer deveria saber empregar a crase corretamente. Mesmo que nossa língua, e consequentemente a escrita, seja um bem político e não cultural, visto que é regida por decreto, e não por uso, prego que deveríamos saber bem aplicá-la. Quantas rúbricas são pedidas por dia no Brasil? E isso que elas nem existem. Imagine se existissem. E me atendo ao tema, quantos acentos graves, diferentemente do meu amigo, precedem os masculinos, excetuando aquele. Poderia ter colocado aspas na última palavra da oração anterior, mas assim fica mais legal. E quantos acentos grave são abandonados, esquecidos e ignorados nos escritos diários de nossa nação! São mais ignorados que a resistência do ar em problemas de física, e tudo acaba em parábolas, como os de Jesus.

E a pronúncia? Isso sim! Ouvir um “à” pronunciado corretamente, “a-á”, isso me tira do sério. Aí fico como meu amigo com as mulheres. É uma caudalosa degustação auditiva. Tudo para ao meu redor. O instante em que a vibração do ar adentra ao pavilhão auditivo, tocando o tímpano e a consequente transmissão nervosa ao cérebro é acompanhada de forma concomitante por um arrepio de frio que vem do fundo da alma e chega ao cérebro passando pela espinha dorsal, atiçando um desejo libidinoso de ouvir novamente aquela palavra. Chega a ser obsceno, mas é sincero.

Mas, como diria João Simões Lopes Neto, minto. Minto, porque é tudo mentira. Não existe amigo sequelado pelas mulheres. Não existe noiva. Não existe cafeteria. Era uma padaria. O noticiário com a crase sim, este momento existiu. E na padaria. Infelizmente nossa língua é regida por deputados e não por lexicógrafos ou gramáticos. A sinestesia existe, e você provou dela. Se gostou eu não sei, mas experimentou. E a independência? Outra mentira! Nem tanto. Resolvi declarar minha própria independência e escrever sobre um tema independente. Ou nem tanto assim.