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O filho de Marina


Era um dia como outro qualquer, acordei cedo e tomei um banho, disse bom dia ao meu irmão, ele sempre estudava muito para se tornar médico, afinal não tinha sequer tempo de limpar as folhas dos jornais e as seringas usadas no chão seu quarto, ele estava sempre sentado na sua escrivaninha tremendo e olhando fixamente para o seu livro, eu sentia orgulho de admirar sua dedicação.

Puxei a cortina de pano que separava meu quarto da cozinha, o café estava pronto como sempre, sorri e peguei algumas xícaras do chão e limpei o caco das outras, papai estava conversando com Joana animado como sempre (depois que mamãe saiu viajar, Joana a amiga do papai, veio morar com a gente), ele falava alto o bastante para que se ouvisse da rua, ele brandia uma tábua suja com molho de tomate enquanto Joana chorava de alegria, ela limpava o molho de tomate da camiseta e dos cabelos e do chão enquanto segurava um pano junto à cabeça. Tomei meu café e saí de casa. Chegando no ponto de ônibus fui abordado pelos meus amigos, todos sorridentes, como de costume me deram um cumprimento caloroso e pediram dinheiro para comprar os doces que dividiríamos mais tarde (eles ficavam com os caramelos e eu com embalagens, não eram tão gostosas mas às vezes ainda tinham um gosto doce) limpei o sangue que tinha caído na minha camiseta e me levantei do chão quando eles foram embora.

Quando o ônibus chegou procurei com os olhos um assento mas estava lotado, o cobrador era um homem gentil, acenou para mim logo que eu entrei:

– O dinheiro, e anda logo que eu não tenho o dia todo.

Eu até tinha o dinheiro…

– O quê? Já não basta ser segunda-feira… anda, cai fora.

– Mas eu…

– Você não tem  dinheiro e eu não tenho paciência, agora vaza!

Saí do ônibus e comecei a caminhada em direção à escola.

No caminho resolvi passar na casa do Tio Arnoldo, ele não é meu tio de verdade, mas é um velho amigo da minha mãe e sempre foi muito gentil comigo, ele sempre me oferecia um chá ou perguntava se eu queria entrar para jogar xadrez, talvez ele pudesse me levar à escola hoje.

– Oi!, tio!

– Ora Ora, olha só quem veio visitar o tio de novo!

– Tio Arnoldo, eu perdi o ônibus de novo, você pode me levar pra escola?

– Claro garoto, será um prazer, mas primeiro deixe-me dar uma olhada em você.

Tio Arnoldo é bem estudado, não sei bem em que… mas ele parece saber oque está fazendo, me deitei no divã e começamos a conversar enquanto ele anotava tudo.

– Então, podemos começar pelo seu irmão?

– Ah, continua o de sempre, ele tem se dedicado muito, quase não sai do quarto.

– Hmmm, entendo… você não tem notado nada de estranho nele?

– Como assim? Ele continua o de sempre!

– Certo, certo. Quanto a Joana? Tem se entendido bem com ela?

– Joana é incrível, ela e papai estavam hoje mesmo limpando a cozinha, tinha muito molho de tomate lá.

– Ai, isso deve ter sido feio…eh, … nossa… quero dizer, … e você não tem visto nada de estranho? Talvez algo de ruim?

Virei a cabeça e comecei a admirar as pinturas nas paredes do consultório, tudo tão lindo.

– Certo, certo…

Tio Arnoldo fez algumas anotações, resolvi pegar uma carta de cima da mesa e comecei a ler:

“Talvez para o garoto fugir ainda seja a melhor opção

ele tenta negar a realidade que tem e se esconder

em seu mundo onde tudo é ‘cor-de-rosa’, geralmente

eu iria sugerir tratamento, mas, por favor Marina, você

deixou este garoto no inferno, não sei se ainda posso…”

Não pude ler mais que isso, Tio Arnoldo pegou a carta e escondeu na gaveta, ele parecia um pouco assustado logo de cara, mas em pouco tempo retornou sua expressão compreensiva de sempre, ele sugeriu que eu tirasse uma soneca enquanto ele fazia alguns telefonemas, dormi pensando na sorte que tenho de viver assim.

Autor: Matheus Furtado Immich