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Truco


Findando o pós-expediente, faltava apenas trocar um dado no sistema e atualizá-lo para dar por encerrada a labuta. Nada de essencial, ou urgente, ou mesmo atrasado. Mahler ao fone de ouvido, eremita à sala, nada ouvia ao seu redor, olvidava o que se passava lá fora. Queria ir para casa um pouco mais cedo que o habitual, tomar um banho e dormir. O dia seguinte seria longo. O atual, curto. A lâmpada piscou. O computador não desligou. Olhou em volta de si. Ermo. Pela janela, o crepúsculo se esvaía como uma poça d`água secando ao calor do Sol em seu zênite. Voltou o olhar para o monitor, a lâmpada piscou pela segunda vez. Desta vez não resistiu: o computador feneceu. O luz branca e fria deu lugar à obumbrada lugubridade do feixe da luz de emergência se esgueirava para passar por debaixo da porta. Desprotegido, o pavilhão auditivo percebia agora o que se passava lá fora: relâmpagos, trovões, chuva e vento. Tão rápido quanto veio, foi. E a energia elétrica de carona. O corredor estava iluminado. Mal. Percebeu que deveria não ter tido o pós-expediente. Cinco minutos bastariam para estar em casa e cumprir o plano do descanso. Em menos tempo as baterias das lâmpadas de emergência esgotaram-se. A pé, foi para o lar.

Todos chegaram ao mesmo tempo, pelo mesmo motivo. Celular para achar velas e fósforos. Iluminados, cabe-lhes… O dia foi quente, banho! Água fria, iluminação torpe, lembra o antigamente. Há tempo não relaxava tanto em um banho. Primeiro incomoda, depois agrada. Sem energia elétrica não há internet. As pessoas ainda sabem se relacionar? Mesa posta, fartam-se apesar da parca luminosidade tremulante. Não apenas de comida ou bebida, mas de histórias, piadas, mentiras, causos, eventos. Riram-se todos, vezes uns dos outros, vezes do nada, vezes de tudo. A imaginação voa, sentindo-se livres. Assuntos aparecem, outros se vão. Nenhum fica, mas a rotatividade é baixa. Guarda-se a comida, limpa-se a mesa. É estranho, mas se olham, se conversam, socializam… Todos prestam atenção, se respeitam, não há distrações, não há barulhos, não há preocupações. Nem as velas apagando, todas, “pela ciência”, preocupam. Em seguida, o que fazer? E a maleta, tá aí? Poker, truco ou uno? Tens baralho de uno? Ô!, de tudo! Faz tempo que não jogo truco. Tens curso superior, então sabes jogar, né? Já que fui intimado…

Truco! Três pau! Seis! Vâmo pro monte! Foge! Não! Caia! Empachou! Quem dá as cartas? Quem pergunta. Vamos secar esse refri com esse destilado? Demorou! Mas nem a pau! Esse lixo? Nasceu morto! Deixa pro pé! Mas tu nem fez sinal! Não viu que foi essa que te passei? Quem levou a primeira? Faz a primeira! Tá quanto mesmo? Será que vale? Passa o copo! Se trucar, pode cair! Vai pra escura! Agora mandamos no jogo! Se cair vocês perdem! Já vai dando ração pra essa aí! Gatinho, gatinho, gatinho! Mole na mão, mole na mesa! O pé tem que fazer. Essa é grande! Só isso pra fazer? Melhor nem ir!

Quase no fim do jogo, a luz piscou. Voltou a ausentar-se. Pouco depois, voltou de vez, ainda antes do término. Mas aí, tudo descambou de vez. Whatsapp, twitter, facebook, messenger… Nem lembram se o jogo acabou, mas acabou. Virada de três a dois. E estava dois a zero. Foi bom enquanto durou. Foi uma janta, uma conversa, um jogo, mas foi bom. Prestavam atenção uns nos outros. Se olhavam e dialogavam. O banho frio relaxou, mas houve calor humano. Por duas horas, enquanto a companhia de energia elétrica não estragou aquele momento, sentiram-se humanos novamente. Não foi só a comida, o diálogo ou o truco. Foi o momento, o respeito, a alegria, o estar física, psíquica, mental e espiritualmente juntos, entregues, sem amarras. Deveria faltar energia mais vezes. Quando ela volta, acaba a poesia.

Autor: Antônio João Fidélis