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A pretensão do conhecimento


Hayek: uma biografia poderosa | Jornal do Empreendedor

Friedrich Hayek foi um economista e filósofo austríaco, e é um dos maiores representantes da Escola Austríaca de pensamento econômico. Ganhador do Prêmio Nobel em Economia, foi um defensor do liberalismo clássico. O texto reproduzido foi proferido da ocasião do recebimento do seu Nobel.

A ocasião especial dessa conferência, juntamente com o principal problema prático que os economistas enfrentam atualmente, tornaram a escolha deste tópico praticamente inevitável.  Por um lado, a ainda recente criação do Prêmio Nobel em Ciências Econômicas é um passo significativo no processo pelo qual, na opinião do público geral, foi concedida à ciência econômica um pouco da dignidade e do prestígio das ciências físicas.  Por outro lado, os economistas estão hoje sendo chamados para salvar o mundo livre da séria ameaça da aceleração inflacionária, que foi causada — devemos admitir — pelas mesmas políticas que a maioria dos economistas recomenda, com grande insistência, que os governos adotem.  Com efeito, resta-nos nesse momento poucos motivos de orgulho: como profissionais, criamos uma enorme bagunça.

Parece-me que essa incapacidade dos economistas em sugerir políticas mais bem sucedidas está intimamente ligada à propensão a imitar, o mais rigorosamente possível, os procedimentos das mais brilhantemente exitosas ciências físicas — tentativa essa que, em nosso campo profissional, pode levar a erros crassos.  Esta é uma abordagem que passou a ser descrita como sendo uma atitude “cientificista” — uma atitude que, como defini há cerca de trinta anos, “é decididamente não científica no verdadeiro sentido do termo, pois envolve uma aplicação mecânica e indiscriminada de hábitos de pensamento a campos diferentes daqueles em que esses hábitos foram formados”[1]  Quero hoje iniciar essa palestra explicando como alguns dos mais graves erros da atual política econômica decorrem diretamente desse erro científico.

A teoria que tem orientado as políticas fiscais e monetárias dos últimos trinta anos — uma teoria que afirmo ser o produto de uma concepção distorcida sobre o procedimento científico adequado — consiste na crença de que existe uma simples correlação positiva entre o nível de emprego e o tamanho da demanda agregada por bens e serviços.  Tal crença nos leva a imaginar que podemos garantir permanentemente o pleno emprego através da manutenção dos gastos monetários totais em um nível adequado.  Dentre as várias teorias utilizadas para se explicar o alto desemprego, esta é provavelmente a única que pode receber o apoio de fortes evidências quantitativas.  Contudo, considero tal teoria fundamentalmente falsa.  Mais ainda: agir tomando-a como base é algo, como estamos constatando, extremamente nocivo.

O que nos leva à questão crucial: a diferença entre a Ciência Econômica e as Ciências Físicas.  Ao contrário das ciências físicas, na ciência econômica — e em outras disciplinas que lidam com fenômenos essencialmente complexos — os aspectos dos eventos a serem estudados, e sobre os quais podemos coletar dados quantitativos, são necessariamente limitados.  Além disso, esse número necessariamente limitado de aspectos quantitativos pode não incluir aqueles aspectos mais importantes.  Nas ciências físicas geralmente se supõe, provavelmente com boas razões, que qualquer fator importante na determinação dos eventos observados é ele próprio diretamente observável e mensurável.  Já no estudo de fenômenos essencialmente complexos — tais como o mercado, que depende das ações de vários indivíduos —, todas as circunstâncias que irão determinar o resultado de um processo dificilmente serão totalmente conhecidas ou mesmo mensuráveis.  Explicarei mais adiante os motivos que me levam a esta afirmação.  Assim, ao passo que nas ciências físicas o pesquisador é capaz de mensurar, com base em uma teoria aparentemente evidente, aquilo que ele julga ser importante, nas ciências sociais frequentemente só se dá importância àquilo que por ventura possa ser mensurado.  Esse modo de pensar é algumas vezes levado ao ponto em que se exige que nossas teorias sejam formuladas de uma maneira que leve em conta apenas grandezas mensuráveis.

Não se pode negar que essa exigência limita arbitrariamente os fatos que podem ser admitidos como possíveis causas dos eventos que ocorrem no mundo real.  Essa visão, que é frequentemente e com muita ingenuidade aceita como procedimento científico sólido, tem algumas conseqüências bastante paradoxais.  Em relação ao mercado e a outras estruturas sociais similares, sabemos que existem muitos fatores que não podem ser mensurados e sobre os quais temos, na verdade, apenas algumas informações muito genéricas e imprecisas.  E como os efeitos desses fatores não podem, em qualquer momento específico, ser confirmados por evidências quantitativas, eles são simplesmente descartados por aqueles que se comprometeram a aceitar apenas aquilo que julgam ser evidência científica.  E assim eles seguem em frente, alegremente crendo na ilusão de que os fatores que eles podem mensurar são os únicos que têm relevância.

A correlação entre demanda agregada e nível de emprego, por exemplo, pode apenas ser aproximada; porém, como é a única sobre a qual há dados quantitativos, passa a ser aceita como o único vínculo causal que importa.  O que temos aí é uma ótima evidência “científica” para uma teoria falsa.  E ela é aceita porque parece ser mais “científica” do que uma teoria que, embora apresente uma explicação válida, é rejeitada apenas porque não há evidências suficientemente quantitativas para embasá-la.

Deixe-me ilustrar isso através de um breve relato sobre o que considero ser a principal causa do amplo desemprego — um relato que também irá explicar por que esse desemprego não pode ser duradouramente sanado pelas políticas inflacionistas recomendadas pela teoria agora em moda.  A explicação correta me parece estar na existência de uma considerável discrepância entre, de um lado, a distribuição da demanda entre os diferentes bens e serviços, e, de outro, a forma como a mão-de-obra e outros recursos são alocados para a produção desses bens e serviços.  Possuímos um conhecimento “qualitativo” razoável sobre as forças através das quais se dá a correspondência entre a oferta e a demanda nos diferentes setores do sistema econômico, sobre as condições sob as quais essa correspondência se dará e sobre os fatores que podem impedir tal ajuste.  Os procedimentos para a descrição desse processo se baseiam em fatos da experiência diária.  E, dentre aqueles que se darão ao trabalho de acompanhar a argumentação, poucos questionarão a validade das suposições factuais ou a exatidão lógica das conclusões derivadas delas.

Posto isso, temos, sim, boas razões para acreditar que o desemprego indica que a estrutura dos salários e dos preços relativos foi distorcida (geralmente em decorrência de uma fixação de preços de caráter governamental ou monopolístico), e que, para se restaurar a igualdade entre a demanda e a oferta de mão-de-obra em todos os setores, serão necessárias mudanças nos preços relativos e também algumas realocações de mão-de-obra.

Porém, quando nos pedem alguma evidência quantitativa sobre qual seria a correta estrutura de preços e salários que garantiria uma venda suave e contínua dos produtos e serviços oferecidos, temos de admitir que não dispomos de tal informação.  Em outras palavras: sabemos quais as condições gerais para que ocorra aquilo que se convencionou chamar, incorretamente, de “equilíbrio”; mas nunca sabemos quais serão os preços ou salários específicos caso seja deixado ao mercado gerar esse equilíbrio.  Podemos apenas dizer quais são as condições adequadas que irão permitir que o mercado estabeleça preços e salários que façam com que oferta e demanda se igualem.  Mas jamais seremos capazes de apresentar informações estatísticas que mostrem quanto os preços e salários atuais estão desviados daqueles valores que iriam assegurar um venda contínua da atual oferta de mão-de-obra.  Embora esse relato das causas do desemprego seja uma teoria empírica — no sentido de que se pode provar que é falsa; por exemplo, se, com uma oferta monetária constante, um aumento geral dos salários não levar ao desemprego —, certamente não se trata do tipo de teoria que poderíamos utilizar para obtermos previsões numéricas específicas sobre qual seria distribuição de mão-de-obra e o nível salarial esperados.

Entretanto, por que deveríamos, nas ciências econômicas, confessar nossa ignorância quanto a determinados fatos que, no caso de uma teoria física, certamente exigiriam que um cientista fornecesse informações precisas sobre eles?  Não é nada surpreendente que aqueles que se impressionam com as ciências físicas achem essa posição muito insatisfatória e insistam nos tipos de teste utilizados por aquele ramo.  Mas há uma razão para ser assim: como já mencionei abreviadamente, as ciências sociais — como grande parte das ciências biológicas, porém ao contrário da maioria da ciências físicas — lidam com estruturas de complexidade essencial, ou seja, com estruturas cujas propriedades características podem ser exibidas somente por modelos compostos por um número relativamente grande de variáveis.  A concorrência, por exemplo, é um processo que só produzirá certos resultados caso ocorra entre um número razoavelmente grande de pessoas agindo.

Em alguns estudos, particularmente quando problemas similares surgem nas ciências físicas, as dificuldades podem ser superadas pelo uso de dados sobre a frequência relativa — ou probabilidade — da ocorrência de várias propriedades singulares dos elementos, ao invés de se utilizar informações específicas sobre os elementos individuais.  Mas isso é válido somente quando lidamos com aquilo que foi chamado pelo Dr. Warren Weaver (ex-membro da Fundação Rockefeller), com notável precisão, de “fenômenos de complexidade desorganizada”, em contraposição aos “fenômenos de complexidade organizada” com os quais lidamos nas ciências sociais.[2]

Complexidade organizada, nesse caso, significa que a natureza das estruturas que apresentam essa complexidade depende não apenas das propriedades dos elementos individuais que compõem essas estruturas, ou da frequência relativa com que ocorrem, mas também da maneira como os elementos individuais se conectam entre si.  Na explicação sobre o funcionamento de tais estruturas, não podemos, por essa razão, substituir as informações sobre os elementos individuais por informações estatísticas; se, com nossa teoria, queremos extrair prognósticos específicos sobre eventos individuais, temos de exigir informações completas sobre cada elemento.  Sem essas informações específicas sobre os elementos individuais, estaremos confinados ao que em outra ocasião chamei de meras “previsões de padrão” — previsões sobre alguns dos atributos gerais das estruturas que se formarão, porém destituídas de quaisquer declarações específicas sobre os elementos individuais que formarão essas estruturas.[3]

Isso é particularmente verdade para as nossas teorias que explicam como se dá a formação de salários e preços relativos em um mercado que tenha um bom funcionamento.  Para a determinação desses salários e preços, são levados em consideração os efeitos das informações particulares que cada um dos participantes do processo de mercado possui — uma soma de fatores que, em sua totalidade, não podem ser apreendidos pelo observador científico ou por qualquer outro cérebro isolado.  A superioridade da ordem de mercado — e a razão por que esta ordem regularmente sobrepuja outros tipos de ordem, quando não suprimida pelos poderes governamentais — está justamente em como se dá a alocação de recursos.  Para tal, utiliza-se o conhecimento de fatores particulares que estão dispersos entre um número incontável de pessoas.  Esses fatores particulares são tantos, e dispersos de tal maneira, que é impossível que um único indivíduo armazene tais informações.  Mas como nós, os cientistas observadores, jamais poderemos saber quais são os determinantes dessa ordem — e, como consequência, somos também incapazes de saber sob qual estrutura específica de preços e salários a demanda será igual à oferta em todo o mercado —, ficamos incapacitados de medir qual é o desvio em relação a essa ordem.  Da mesma forma, também não podemos testar estatisticamente a nossa teoria de que são os desvios em relação àquele sistema que “equilibra” preços e salários que tornam impossível vender alguns desses produtos e serviços pelos seus preços de oferta.

Mas antes de continuar analisando os efeitos de tudo isso sobre as políticas de emprego atualmente adotadas, permitam-me definir mais especificamente as limitações intrínsecas do nosso conhecimento numérico, limitações estas que frequentemente são desconsideradas.  Quero fazer isso para não dar a impressão de que rejeito generalizadamente o método matemático em economia.  Com efeito, a grande vantagem da técnica matemática é que ela nos permite descrever, por meio de equações algébricas, a natureza geral de um padrão, mesmo quando desconhecemos os valores numéricos que irão determinar a manifestação desse padrão.  Sem essa técnica algébrica, dificilmente teríamos alcançado aquela descrição abrangente das interdependências mútuas dos diferentes eventos em um mercado.  Entretanto, criou-se a ilusão de que podemos utilizar essa técnica para a determinação e previsão dos valores numéricos dessas magnitudes; e isso levou a uma inútil busca por constantes quantitativas ou numéricas.

Isso aconteceu apesar de os fundadores modernos da economia matemática não terem tais ilusões.  É verdade que seus sistemas de equações descrevendo o padrão de um equilíbrio de mercado são aparentemente tão abrangentes que se preenchêssemos todas as variáveis dessas fórmulas abstratas — isto é, se soubéssemos todos os parâmetros dessas equações — seríamos capazes de calcular os preços e quantidades de todas as mercadorias e serviços vendidos.  Porém, como Vilfredo Pareto, um dos fundadores dessa teoria, afirmou claramente, o propósito desse sistema de equações não é “possibilitar um cálculo numérico dos preços”, porque, como ele disse, seria “absurdo” supor que podemos determinar todos os dados.[4]  De fato, o ponto principal já havia sido entendido por aqueles notáveis visionários da economia moderna, os escolásticos espanhóis do século XVI, que enfatizaram que aquilo que chamavam de pretium mathematicum — o preço matemático — dependia de tantas circunstâncias particulares que era impossível que o homem conhecesse todas elas.  Somente Deus teria tal capacidade.[5]

Algumas vezes já desejei que nossos economistas matemáticos levassem a sério essa consideração.  Devo confessar que ainda tenho dúvidas se suas buscas por magnitudes mensuráveis trouxeram contribuições significativas à nossa compreensão teórica dos fenômenos econômicos — em contraposição à utilidade que elas possuem para descrever situações particulares.  Também não estou preparado para aceitar a desculpa de que esse ramo de pesquisa é ainda muito jovem: afinal, Sir William Petty, o fundador de econometria, foi praticamente um colega sênior de sir Isaac Newton na Royal Society!

Podem até serem poucos os casos de danos reais no campo econômico causados pela crença de que apenas magnitudes mensuráveis são importantes.  Porém, os atuais problemas com a inflação e o desemprego representam um desses casos — e um extremamente sério.  Seu efeito foi fazer com que a maioria dos economistas de mentalidade cientificista negligenciasse aquela que provavelmente é a verdadeira causa do amplo desemprego, uma vez que a ação desta causa não pode ser confirmada por relações diretamente observáveis entre magnitudes mensuráveis.  Uma atenção quase exclusiva sobre fenômenos superficiais que são quantitativamente mensuráveis gerou uma política que tem piorado a situação cada vez mais.

Devo, é claro, prontamente admitir que o tipo de teoria que considero como sendo a verdadeira explicação para o desemprego é uma teoria cujo conteúdo é um tanto limitado.  E assim o é porque ela nos permite fazer apenas prognósticos muito generalizados sobre os tipos de eventos que devemos esperar em uma dada situação.  Por outro lado, as conseqüências das teorias mais ambiciosas não têm sido muito venturosas.  E confesso que prefiro um conhecimento imperfeito, porém verdadeiro — mesmo que deixe muitas coisas indeterminadas e seja incapaz de fazer previsões —, a um pretenso conhecimento exato, mas provavelmente falso.  A credibilidade que teorias aparentemente simples, porém falsas, podem ganhar em decorrência de sua conformidade com padrões científicos reconhecidos pode levar a graves conseqüências, como a presente situação comprova.

De fato, no assunto em questão — o desemprego —, as mesmas medidas que a teoria “macroeconômica” dominante tem recomendado para se curar o desemprego — a saber, o aumento da demanda agregada — se tornaram a causa de uma vasta má alocação de recursos, o que certamente irá tornar inevitável um desemprego em larga escala, no futuro.  A contínua injeção de quantias adicionais de dinheiro gera, em alguns pontos do sistema econômico, uma demanda temporária que inevitavelmente irá acabar assim que o aumento da quantidade monetária parar ou desacelerar.  Essas injeções monetárias, juntamente com a expectativa de um contínuo aumento nos preços, direcionam mão-de-obra e outros recursos para empregos que irão durar somente enquanto a expansão da quantidade de dinheiro continuar na mesma taxa — ou até mesmo somente enquanto a expansão monetária continuar a uma taxa crescente.

Essa política, ao contrário do que dizem alguns, não produziu um nível de emprego que não pudesse ter sido criado de outras maneiras; ela produziu, isto sim, uma distribuição do emprego que não pode ser indefinidamente mantida e que, após algum tempo, será preservada apenas se houver uma taxa de inflação tão grande que inevitavelmente levará à desorganização de toda a atividade econômica.  O fato é que, em decorrência de uma visão teórica equivocada, fomos levados a uma posição precária, em que não mais podemos impedir que um substancial desemprego reapareça; não porque esse desemprego irá ser deliberadamente gerado como instrumento de combate à inflação — como alguns, equivocadamente, interpretam essa visão —, mas, sim, porque, tão logo a inflação monetária desacelere, o desemprego passará a ser uma lastimável porém inevitável conseqüência das políticas equivocadas do passado.

Relatei esses problemas, cuja importância prática é imediata, principalmente para ilustrar as conseqüências significativas dos erros relacionados a problemas abstratos da filosofia da ciência.  Há inúmeras razões para estarmos apreensivos quanto aos perigos de longo prazo criados pela aceitação indiscriminada de afirmações que aparentam serem científicas.

Meu principal intuito foi demonstrar, através de exemplos localizados, que — em relação aos assuntos de minha área e, de forma mais, geral, aos de todas as ciências humanas — certos procedimentos, aparentemente muito científicos, são, frequentemente, os que, na verdade, têm o menor grau de cientificidade.  Além disso, nessas outras atividades há limites definitivos com relação ao que se espera que a ciência possa realizar.  Confiar à ciência — ou à possibilidade de deliberadamente se exercer qualquer controle baseado em princípios científicos — mais do que o método científico pode conseguir, certamente acarretará efeitos deploráveis.  É verdade, todavia, que atualmente o progresso das ciências naturais tem em tal ponto excedido as expectativas, que qualquer alusão à existência de limites às suas possibilidades corre o risco de ficar sob suspeita.

Este modo de ver os fatos vai encontrar resistência especialmente por parte daqueles que alimentavam a esperança de que nosso crescente poder de previsão e controle — geralmente atribuído ao avanço científico —, quando aplicado a processos sociais, tornaria possível moldarmos a sociedade de acordo com o nosso gosto.  É certamente verdade que, ao contrário das descobertas das ciências físicas, que tendem a provocar muito entusiasmo, as ideias que formamos a partir do estudo da sociedade têm, na maior parte das vezes, produzido um efeito deletério em nossas aspirações.  Não surpreende, por outro lado, que os nossos mais jovens e impetuosos colegas de profissão nem sempre estejam preparados para aceitar essa verdade, não obstante a confiança no poder ilimitado da ciência frequentemente se basear na falsa crença de que o método científico consiste na aplicação de uma técnica “pré-fabricada”, ou na simples imitação da forma — e não da substância — do processo científico, como se alguém precisasse seguir as receitas de um manual de culinária para resolver todos os problemas sociais.  Às vezes, parece mais fácil aprender técnicas científicas do que usar os processos de raciocínio que podem nos mostrar quais são os problemas e como abordá-los.

O conflito entre o que o público — em seu estado atual de espírito — espera da ciência quanto à satisfação dos seus próprios anseios e o que ela pode realmente oferecer é uma questão muito séria.  Mesmo que todos os verdadeiros cientistas reconhecessem as limitações do que são capazes de fazer no campo das ciências humanas, enquanto houver esperanças da parte do público, sempre haverá quem finja — ou talvez mesmo quem acredite honestamente — que pode fazer anseios populares, mais do que efetivamente pode.  Até mesmo para especialistas é muitas vezes difícil — e é certamente impossível para o leigo, em muitas ocasiões — distinguir entre pretensões justificáveis e injustificáveis, levantadas em nome da ciência.  Por exemplo, os mesmos meios de comunicação que deram enorme publicidade a um relatório que, em nome da ciência, tratava dos limites do crescimento, silenciaram totalmente quanto à crítica devastadora feita por especialistas competentes a este relatório[6].  Este exemplo nos faz ficar bastante apreensivos quanto ao que se pode fazer em nome do prestígio da ciência.

Por outro lado, não é, de modo algum, apenas na economia que se fazem ousadas reivindicações no sentido de haver um cada vez maior direcionamento científico para todas as atividades humanas, ou que se procuram substituir processos espontâneos por “controle humano consciente”.  Se não estou enganado, os campos da psicologia, psiquiatria, alguns ramos da sociologia, além da chamada filosofia da história, são — até mais que a economia — afetados não só por aquilo a que tenho chamado de ‘parcialismo cientificista’ como também por expectativas espúrias com relação ao que a ciência pode proporcionar[7].

Se quisermos preservar a reputação da ciência e evitar esta distorção que quer fazer o conhecimento parecer verdadeiro a partir de uma semelhança meramente superficial com o procedimento das ciências físicas, será preciso muito esforço para que cheguemos a desmascarar essas apropriações indébitas da ciência, algumas das quais já se tornaram direitos adquiridos de reputados departamentos universitários.  É impossível sermos suficientemente gratos a alguns modernos filósofos da ciência, como é o caso de Sir Karl Popper, por nos terem legado um “teste” para a distinção entre o que pode e o que não pode ser aceito como científico — teste este pelo qual não passariam algumas doutrinas hoje amplamente aceitas como científicas.

Os fenômenos essencialmente complexos — como são as estruturas sociais — apresentam, porém, problemas específicos que me levam a reformular em termos mais gerais não só as razões pelas quais é maior, para esses campos, o número de obstáculos intransponíveis quando se deseja prever determinados acontecimentos, mas também os motivos que nos levam a agir como se tivéssemos conhecimento científico suficiente para superar tais obstáculos, atitude que dificulta em muito o avanço do intelecto humano.

O mais importante é lembrar que o amplo e rápido desenvolvimento das ciências físicas teve lugar em certas áreas que permitiam basear as explicações e as previsões em leis relacionadas aos fenômenos observados como funções de relativamente poucas variáveis — ou fatos singulares, ou acontecimentos de frequência relativa.  Pode-se mesmo considerar que esta seja a razão primordial de distinguirmos esses ramos do conhecimento rotulando-os de “físicos”, ao contrário daqueles que se prendem a estruturas muito mais organizadas, denominadas aqui de “essencialmente complexas”.  Não há razão para que se considerem da mesma forma as duas situações.

As dificuldades que encontramos quando lidamos com fenômenos essencialmente complexos não se ligam, como se poderia imediatamente pensar, à formulação de teorias capazes de explicar os acontecimentos observados, muito embora os fenômenos essencialmente complexos acarretem dificuldades especiais em testar as explicações propostas e, consequentemente, em afastar as más teorias.  O principal problema que surge quando aplicamos nossas teorias a qualquer situação específica do mundo real é o de que uma teoria a respeito de fenômenos essencialmente complexos deve fundamentar-se em um grande número de fatos particulares.  Estes devem, antes de ser base de previsões ou objetos de testes, passar, todos, por severa averiguação.

Se for possível arregimentar este grande número de fatos particulares, não deverá, em princípio, haver dificuldade especial na obtenção de previsões passíveis de prova.  Com o auxílio de computadores modernos, deve ser muito fácil inserir esses dados nos espaços em branco das fórmulas teóricas, para obter previsões.  A dificuldade real, no entanto, consiste na averiguação dos fatos particulares.  Para este problema a ciência tem poucas soluções a oferecer; às vezes, ele é mesmo insolúvel. 

Basta um exemplo muito simples para mostrar qual é, de fato, a natureza da dificuldade.  Consideremos uma partida de futebol disputada por algumas poucas pessoas de habilidades muito semelhantes.  Se, além do nosso conhecimento geral das habilidades individuais dos jogadores, pudéssemos conhecer uns poucos dados particulares, tais como o grau de atenção de cada um, sua capacidade de percepção, bem como suas condições cardíacas, pulmonar, muscular etc., a cada momento da disputa poderíamos provavelmente prever o resultado do jogo.  Na verdade, se temos muita familiaridade com o jogo e com as equipes, temos, certamente, uma boa visão dos fatores que determinam o resultado.

Mesmo assim, é logicamente impossível para nós averiguarmos todos os dados particulares de que falamos.  Assim, o resultado do jogo fica fora do alcance daquilo que é cientificamente previsível, apesar do muito que podemos saber sobre os efeitos que certos acontecimentos podem exercer no resultado do jogo.  Isso não significa porém, que não possamos fazer qualquer previsão sobre o curso do jogo.  Se conhecemos as regras de diferentes jogos, ao observarmos um destes jogos, podemos, imediatamente, dizer qual é ele e que tipos de jogadas podemos ou não esperar que os jogadores façam.  Mas nossa capacidade de prever estará sempre restrita a estas características gerais dos acontecimentos possíveis: não poderemos prever particularidades de acontecimentos únicos.

Essa explicação corresponde ao que antes chamei de simples previsão de padrões.  A eles vamo-nos prendendo cada vez mais à medida que vamos saindo de áreas onde predominam leis relativamente simples, e nos adentrando na classe de fenômenos caracterizados por regras de complexidade organizada.  Quanto mais avançamos nessa direção, maior é a frequência com que pensamos poder efetivamente verificar algumas — mas não todas — circunstâncias que determinam o resultado de um dado processo.  Consequentemente, tornamo-nos capazes de prever alguns — mas não todos — elementos que constituem o resultado que, para nós, deve ser esperado.  Muitas vezes, no entanto, não é possível prever mais que uma outra característica abstrata do padrão que irá emergir, como as relações entre tipos de elementos, sobre cada um dos quais, particularmente, muito pouco sabemos.  Apesar de tudo isso — e quero voltar a frisar este ponto — ainda é possível obtermos previsões que, tendo sido falsificadas, satisfazem o teste de significância empírica de Popper.

É claro que estas simples previsões de padrões, comparadas com o tipo de previsão precisa que aprendemos a esperar no campo das ciências físicas, se apresentam como uma alternativa de segunda categoria.  Mas o perigo contra o qual desejo advertir está precisamente na crença de que é preciso conseguir cada vez mais, para reivindicar reconhecimento como ciência.  É este o caminho do charlatanismo, ou de coisa pior.  Ações baseadas na crença de que possuímos conhecimento e poder tais, que nos permitem moldar os processos sociais inteiramente de acordo com nossa vontade — conhecimento e poder que, na realidade, não possuímos —, provavelmente nos levarão a fazer muito mal.

Quando se trata de ciências físicas, há poucas objeções à tentativa de fazer o impossível.  Algumas vezes sentimos até que não devemos desencorajar pessoas superconfiantes, uma vez que suas experiências podem, no fim das contas, trazer novas ideias.  Nas ciências sociais, no entanto, o equívoco no sentido de que o exercício de algum poder teria necessariamente consequências benéficas, poderia levar à concessão, a alguma autoridade, de um novo poder que talvez fosse usado para coagir.  Este poder talvez não seja mau em si mesmo, mas seu exercício pode vir a obstruir o funcionamento daquelas forças espontâneas coordenadoras que, efetivamente, tanto ajudam os homens na persecução de seus ideais, mesmo que eles não consigam entendê-las.

Já se pode começar a perceber como é sutil o sistema de comunicação no qual se baseia o funcionamento de uma sociedade industrial desenvolvida.  Este sistema de comunicação, que chamamos de mercado, vem a ser um mecanismo de condensação de informações dispersas mais eficiente que qualquer outro deliberadamente concebido pelo homem para o mesmo fim.

Se o que os homens pretendem é causar menos danos que benefícios por meio de seus esforços no sentido de aperfeiçoar a ordem social, eles terão de aprender que neste campo — assim como em outros em que predomina a complexidade essencial do tipo organizado — não é possível chegar ao conhecimento pleno que viabilizaria o domínio dos acontecimentos.  Terão, portanto, de usar o conhecimento que puderem conseguir, não para moldar resultados, como um artesão em seu trabalho manual, mas para cultivar o crescimento por meio da preparação de um ambiente apropriado, tal como faz o jardineiro com as suas plantas.

É muito perigosa a sensação exuberante do poder sempre crescente que, engendrada pelo avanço das ciências físicas, incentiva o homem a tentar, “inebriado com o sucesso” — para utilizar uma expressão característica dos primórdios do comunismo — submeter tudo o que o cerca, meio ambiente e também seres humanos, ao controle de sua vontade pessoal.  O reconhecimento dos limites insuperáveis do seu conhecimento deveria ser, para aquele que estuda a sociedade, uma lição de humildade tal, que ele desejasse manter-se longe de qualquer eventual cumplicidade com o esforço fatal do homem no sentido de controlar a sociedade — esforço que não apenas faz do homem um tirano de seus concidadãos, mas também pode levá-lo a destruir uma civilização que não foi engendrada por cérebro algum: uma civilização que tem prosperado como resultado dos esforços livres de milhões de indivíduos.

Fonte: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=222