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A natureza não dá a mínima para o que pensamos


O que difere os humanos dos outros seres vivos? Está aí uma simples (e difícil) questão. Desde que Charles Darwin publicou suas ideias em A origem das espécies, em 1859, as teorias sobre as diferenças entre nós e outras espécies evoluíram bastante. Quase um século depois, em 1953, a ciência da vida passou por outra revolução quando James Watson e Francis Crick, graças às descobertas de Rosalind Franklin, descobriram a estrutura do DNA.

A ironia, no entanto, é perceber que, quanto mais se sabe sobre biologia, mais difícil é explicar o que diferencia o Homo sapiens das outras espécies. São muitos os comportamentos considerados humanos que, nas últimas décadas, foram observados em outros animais. Além disso, quando o assunto é genética, parecemos ainda menos “exclusivos”, pois dividimos genes com uma gama enorme de outros organismos.

Isso explica por que a curiosidade sobre nossas particularidades (não tão particulares assim) segue viva entre muitos cientistas, entre eles o geneticista britânico Adam Rutherford. Ele estuda biologia há mais de 25 anos, pesquisando conexões e divergências entre os milhares de organismos mundo afora — e escrevendo sobre o assunto.

Em O livro dos humanos: A história de como nos tornamos quem somos, publicado em 2018 e trazido para o Brasil em 2020 pela editora Record, o autor compartilha o que descobriu em mais de duas décadas estudando o assunto. “Temos muitas características que parecem ser exclusivamente humanas, mas se olharmos mais de perto, não são. Por exemplo, fazer sexo por prazer, estados emocionais como amor e luto, sexo coersivo, necrofilia, a fabricação de ferramentas… Tudo isso já foi observado em outras espécies”, disse Rutherford, em uma conversa por telefone com GALILEU. A obra também traz reflexões sobre a evolução da ciência e fala da importância de compreendermos a natureza pelo que ela é, e não pelo que achamos que seja.

Confira a seguir entrevista completa:

Você já escreveu livros sobre diversos outros temas. Por que escolheu esse assunto para esta nova publicação?
No fim do meu último livro, Uma breve história de todas as pessoas que já viveram (2016), falo sobre o que achamos que torna os humanos excepcionais, mas ainda assim é comum em outras espécies. Eu escrevi algo como “a sensação é que se todos somos especiais, ninguém realmente é especial”. Não percebi na hora, mas essa frase veio diretamente do filme Os Incríveis, da Disney (risos). Fato é que isso plantou uma semente na minha cabeça e decidi focar no que diferencia os humanos das outras espécies.

Como foi o processo para escrever o livro?
A parte escrita em si levou cerca de dois anos, mas, para falar a verdade, estudo o assunto há 25 anos, então esse é um trabalho de muito tempo. Ah, e claro que só pude escrever esse livro graças a pesquisas feitas por gerações de humanos que existiram antes de mim. Esse é um ótimo exemplo do que concluo no livro: o que nos difere enquanto espécie é a capacidade de, a partir da comunicação, ensinar o que aprendemos.

Então, basicamente, a explicação do que nos diferencia é a capacidade de ensinar?
Exatamente! Temos muitas características que parecem ser exclusivamente humanas, mas se olharmos mais de perto, não são. Por exemplo, fazer sexo por prazer, estados emocionais como amor e luto, sexo coersivo, necrofilia, a fabricação de ferramentas… Tudo isso já foi observado em outras espécies.
Acredito que a comunicação falada também seja um dos nossos diferenciais, mas o principal é que somos uma espécie social de professores e alunos. Outros animais aprendem na prática ou copiando outros indivíduos, mas nunca foram observados fazendo o que estamos fazendo agora, por exemplo.
Eu e você nunca nos conhecemos, não somos parte da mesma família e não teremos mais chances de sobreviver por compartilhar informações. Além disso, é improvável que algum dia nos encontremos e menos provável ainda que tenhamos filhos. Não ganhamos nada, diretamente, por essa troca de conhecimentos e, ainda assim, cá estamos, compartilhando o que sabemos. É isso o que os humanos fazem.

No livro, você fala sobre os perigos de comparar outras espécies com os seres humanos. Por que isso é ruim?
Compartilhamos muitas coisas com os nossos ancestrais, como nossa bioquímica, hábitos e até alguns comportamentos, então estudar as outras espécies pode ser útil para compreendermos o ser humano. Entretanto, realizar comparações e exagerar nas conclusões pode ser perigoso, principalmente quando buscamos justificativas biológicas para comportamentos que são resultado de ideologias sociais.

Um exemplo é o trabalho do biólogo Jordan Peterson, que justifica o patriarcado entre os humanos porque ele existe em outras espécies, como as lagostas. Ora, mas por que lagostas? Por que não os bonobos? Eles são muito mais próximos de nós evolutivamente que as lagostas — e têm sociedades matriarcais. Quando você olha para a natureza, pode escolher qualquer comportamento humano e justificá-lo por sua existência em suas espécies, e isso nem sempre é verdade. Na realidade, é um tanto desonesto cientificamente.

Ao mesmo tempo, enquanto conversamos, meu cachorro está me olhando com uma carinha de “com quem você está falando?”
(Risos) É, nós tendemos a antroporfomizar animais. O curioso dos cães, por exemplo, é que mesmo sem fazer de propósito, influenciamos sua evolução: selecionamos como pets os cachorros mais expressivos, que mexem as sobrancelhas e parecem expressar emoções. Isso não acontece com seus parentes caninos, os lobos.

Esse hábito é natural e não tem problema, quer dizer, queremos assistir aos filmes da Disney numa boa. O problema é quando começamos a cofundir as coisas. Por exemplo, os golfinhos aparentam ser “simpáticos” porque parecem estar sorrindo, mas, na verdade, têm algumas práticas bem cruéis, como o sexo coercitivo. A natureza não dá a mínima para o que pensamos, não podemos impor nossas normas aos animais.

Por que é errado fazer isso?
Quando comparamos o sexo coercitivo dos golfinhos com estupro, por exemplo, estamos impondo nossos valores sobre os animais, e isso causa vários problemas. Primeiro de tudo porque na natureza não existem valores morais, pelo menos não como os conhecemos. Segundo porque sabemos que o estupro está longe de ser algo justificável pela biologia, é um comportamento resultante de ideologias sociais. Logo, comparar essas duas situações é um erro.

Você acredita que esses mal-entendidos, em partes, têm a ver com ideias erradas sobre a teoria da evolução?
A teoria da evolução por seleção natural é a ideia mais poderosa que já existiu — o problema é que as pessoas tendem a acreditar que tudo pode ser explicado por ela. Nem todas as características ou comportamentos existem para ou por causa de algo. A grande maioria das coisas na biologia simplesmente acontecem, são neutras. Mas temos essa ideia de que “tudo na natureza acontece por um motivo”.

Isso não contece apenas quando o assunto é evolução. O próprio Voltaire escreveu sobre isso em Cândido (1759). Não sobre evolucionismo, mas sobre a necessidade que temos de acreditar que há um motivo para tudo, quando, na verdade, não funciona assim. Essa forma de pensar leva até a mídia e os pesquisadores a deduzirem informações falsas sobre o assunto.

Na sua visão, qual será a próxima grande revolução na biologia?
Essa é uma ótima pergunta, um tanto difícil. Minha resposta é: não acredito que ocorrerá propriamente uma revolução, mas sim uma melhora na forma como estudamos a biologia. Ela será mais inclusiva e abrangente. Vou explicar melhor. Por conta do racismo e do sexismo estruturais, os europeus foram muito mais estudados do que qualquer outro povo no mundo, e isso é um problema se considerarmos que grande parte dos hominídeos surgiram na África.

Nós, pesquisadores, sabemos disso e queremos estudar povos de todo o mundo, mas precisamos fazê-lo da forma correta. Não podemos criar um tipo de “colonialismo científico”, ou seja, não podemos ir até determinada população, coletar o que precisamos e ir embora. O que devemos fazer é trabalhar em conjunto com os locais, em parceria.

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