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Mexendo com sua cabeça


Você pode não perceber, mas alguma coisa acontece no seu cérebro toda vez que a telinha do celular se ilumina. O aparelhinho já virou parte essencial do nosso corpo e mexe mesmo com a nossa central de controle: pode mudá-la, substituí-la em algumas funções ou condicioná-la a se comportar de determinada maneira.

O celular já é uma extensão do nosso cérebro. Você utiliza-o como parte da memória, como se fosse parte de você
Edgard Morya, pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra

Ao longo da história, outras tecnologias até moldaram nosso cérebro, mas nenhuma delas tinha tantos truques na manga ou se massificou como o smartphone.

Calma, não é o fim do mundo. Toda essa mudança não é necessariamente ruim, já que o cérebro é mestre em adaptações e deve tirar isso de letra.

Mas e você? Tira de letra a sua relação de dependência com o celular?

Como age o cérebro

Antes de entender o casamento entre smartphone e cérebro, é bom analisar como agem os noivos.

O órgão humano tem diversas habilidades, mas uma é crucial para entender essa relação com os celulares: a plasticidade, ou seja, a capacidade de ele adaptar sua estrutura para desempenhar novas funções ou criar soluções caso sofra alguma lesão.

Isso faz com que ele mude, adapte-se e molde-se tanto no nível estrutural (nos axônios que ligam os neurônios), quanto no funcional (na comunicação entre os neurônios). O cérebro precisa mudar para que a gente consiga aprender algo, senão nada feito. Quando você aprende a escrever um texto no papel, é necessário que aconteça uma adaptação neurofisiológica. E, de adaptação em adaptação, vamos ganhando novas habilidades, perdendo algumas no caminho ou reduzindo conhecimentos já adquiridos. Isso é perfeitamente normal –pelo menos do ponto de vista neurológico.

Como você já deve ter percebido, é essa neuroplasticidade que faz com que o cérebro aprenda rapidamente os segredos do celular e mude algumas de suas estruturas por causa do aparelho.

Todo mundo que aprende a ler perde um pouco a capacidade de reconhece faces. Analfabetos possuem melhor desempenho no reconhecimento de faces do que os letrados, mas que lê ganha uma maneira de comunicação e armazenamento de informação. Uma mudança no nosso cérebro não necessariamente vem a ser uma coisa ruim

Marília Zaluar Guimarães, neurocientista do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, da UFRJ e da Rede Nacional de Ciência para Educação

O efeito do smartphone na mente

sso já aconteceu antes com outras tecnologias, da escrita e dos livros aos meios magnéticos de armazenamento de informação, também conhecidos como HDs, que, cada um a seu tempo, substituíram algumas funções da memória.

Mas nunca com a intensidade observada agora, explica Guimarães. E há aqui duas explicações:

  1. A massificação do smartphone tornou-o um acessório individual.
  2. Cada recurso do aparelho é capaz de estimular o cérebro de diferentes maneiras, da tela à câmera, da calculadora ao bloco de notas.

Interagir com um aparelho cheio de funções faz com que seu cérebro tenha de se especializar para aprender dezenas de recursos. Só que, ao fazer isso, ele entende o aparelho como um adendo de si. É algo parecido com o que acontece com a raquete de tênis para um tenista profissional ou com o piano para um pianista, explica Morya. “Ele não precisa saber onde está uma tecla, já que o piano é como se fosse parte do corpo dele.”

Agora faça um exercício mental: pense em quantos pianistas você conhece. E donos de celular? Eis o poder de contágio do celular. “Quanto mais tempo a pessoa passa com o telefone, mais a área que representa os dedos no cérebro vai crescer e ficar ágil, por causa da tela sensível ao toque e das funcionalidades que exigem a movimentação dos dedos”, ressalta Weingartner.

O smartphone atinge áreas no cérebro que um telefone normal não atingia. Há todo um estímulo visual trazido pela tela, o que já modifica a relação do equipamento com o cérebro, e há o desenvolvimento da parte motora pra aprender a mexer, o que celulares analógicos não traziam

Julie Weingartner, neurocientista e pesquisadora do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.

Aparelho vira extensão da nossa memória

Como todo apaixonado, após cair nas garras desse amor gostoso com o smartphone, o cérebro começa a mudar de comportamento. Como são muitas, vamos passear por elas uma a uma, mas não é assim que acontece na vida real. Tudo ocorre simultaneamente.

Os especialistas são unânimes em diz que os celulares inteligentes já são responsáveis por executar uma função muito íntima do seu sistema cognitivo: a memória. “De quantos números de celular você lembra agora? Eu mal lembro o meu e o da minha mãe. Antigamente, a gente sabia o telefone de todo mundo”, brinca Guimarães.

O exemplo é simples, mas a explicação para o esquecimento de pequenos detalhes mostra como o processo não é banal. Seu cérebro divide as memórias em dois subgrupos:

  • As de curto prazo, chamadas de memória de trabalho. Você usa-as por tempo suficiente para lidar com uma tarefa. Por exemplo: em um problema de lógica, caso você não memorize momentaneamente as condicionantes do problema, não vai conseguir solucionar a questão.
  • As de longo prazo, aquelas que duram um pouquinho mais. Essas também se dividem em dois grupos, a das memórias declarativas (fatos ou episódios) e as não-declarativas (conceitos, habilidades e aprendizados associativos).

Nossa memória ganha um HD externo

O que acontece agora é que informações como números de telefone, antes registradas no seu cérebro como memórias de longo prazo declarativas, passaram a ser guardadas no seu celular. Isso vale também para outras recordações, como lembranças de viagens, shows ou festas, que praticamente não existem se não forem registradas em uma foto.

“Vamos supor que eu queira lembrar dos momentos que eu passei com meu irmão quando ele veio me visitar. Isso está registrado na minha memória, ainda que eu não possa ver, porque a memória de longo prazo é uma fonte de armazenamento não acessível”, diz Weingartner. Mas ter um celular registrando esse momento modifica essa nossa relação com essa memória, porque passamos a acessá-la quando ela não está só registrada no cérebro.

Por isso, os neurocientistas classificam o celular com uma extensão do hipocampo, estrutura localizada nos lobos temporais e considerada a central da memória.

O lado bom é que, ao criar um histórico de lembranças que podem ser consultadas com um toque, o celular ajuda a consolidarmos algumas memórias. Como nossa capacidade cognitiva é limitada (estudos apontam que nosso cérebro processa só 60 bits por segundo), os especialistas julgam que delegar parte da memória de longo prazo aos smartphones não é tão danoso.

A memória é usada para tudo. Você precisa da memória para fazer uma conta, mas se fizer uma previsão matemática de um modelo científico vai usar não só a memória como outras áreas do cérebro. O celular substitui isso? Não

Edgard Morya

Dopamina na veia vicia

Claro que nem todas as interações do smartphone com seu cérebro são úteis ou saudáveis. O aparelho é todo pensando para fazer você ficar louco para pegá-lo o tempo todo. A consultora norte-americana em neuropsicologia Susan Weinschenk, autora do livro “Neuro Web Design – What Makes Them Click?” (“Neuro Web Design – O que os faz clicar”, em tradução literal), chama esses truques de “gatilhos neurológicos”.

Funciona assim: todas as vezes que pinta alguma notificação no seu celular, você libera dopamina. Esse neurotransmissor é responsável em alguma medida pela sensação de prazer. Alguns alertas, em especial, como sinalizações de “curtidas” ou comentários em postagens que você fez, geram ainda mais prazer.

“Você faz uma ação, tem a liberação de um neurotransmissor e se sente bem. A tendência é querer fazer isso mais vezes”, diz Morya.

Então, se você já se pegou rolando o feed no Facebook ou no Instagram por horas e horas sem objetivo nenhum ou querendo loucamente postar algo, saiba que você caiu em uma armadilha. É o ‘loop de dopamina’, um ciclo vicioso de bem-estar que faz seu cérebro esquecer do mundo.

O smartphone deixa a gente conectado 24 horas por dia, recebendo uma injeção de neurotransmissores cada vez que apertamos a bolinha do celular

Janaína Brizante, psicóloga e diretora do laboratório de neurociência da Nielsen

Estresse causado pelo tsunami de notificações

Só que seu cérebro não é bobo. Ao notar essa inundação de dopamina, ele cria uma trava para impedir que qualquer meia dúzia de curtidas leve você ao êxtase. Parece ótimo, mas o estímulo precisa ser cada vez maior para que você tenha a mesma sensação de prazer. Aí vira uma armadilha.

Além disso, o sistema que libera os neurotransmissores é sensível a indícios de que algo agradável está prestes a acontecer. Ou seja, basta uma notificação para que fique em estado de alerta. Entra em cena uma dose de outro neurotransmissor, o cortisol, aquele que induz ao estresse.

Esse processo vai condicionando nosso cérebro a aguardar que pintem notificações no celular. “Isso gera bastante ansiedade e faz que algumas pessoas fiquem o tempo todo checando se há coisa nova no celular”, afirma Brizante.

Toma, distraído!

Essa constante expectativa pelo surgimento de uma notificação gera outro efeito. Além de manter os donos de celulares em constante estado de alerta, deixa-os desatentos.

“A questão da atenção é brutal”, comenta Marília Zaluar Guimarães. Ela cita estudos em que pesquisadores demonstraram que a capacidade cognitiva é seriamente afetada pela simples presença do celular. Eles testaram alunos em três situações diferentes: com o celular posicionado em cima mesa, com o celular na bolsa/bolso ou com o celular fora sala em que estavam. Aplicaram provas sobre o conteúdo ensinado nesses três momentos.

O desempenho dos estudantes melhorou à medida que o aparelho foi se distanciando. Agora, um detalhe chocante: o pior resultado dos alunos foi com os celulares em cima da mesa, ainda que estivessem virados para baixo. Ou seja, mesmo sem ver a tela, o aparelho já é uma distração por todos os gatilhos neurológicos armados previamente no cérebro.

Esse efeito persiste também com o aparelho desligado, principalmente quando se exige a concentração em uma só atividade. Pesquisadores da Universidade Stanford descobriram que jovens acostumados à enxurrada de estímulos gerada pelo celular têm cérebros mais preguiçosos e com menor capacidade de ignorar informações irrelevantes. “Eles são sedentos por irrelevância”, afirmou o professor Clifford Nass, um dos pesquisadores, à revista “Proceedings of the National Academy of Sciences”.

Em testes, os acadêmicos constataram que esses indivíduos não conseguem memorizar dados simples, como letras que se repetem. As informações vistas nesse troca-troca de tarefas não chegam nem a virar memórias de curto prazo, o que dificulta a consolidação de um aprendizado.

Crise no relacionamento: atarefados e desatentos

O poder dos smartphones de executar inúmeras funções é outra coisa que mexe com seu cérebro. Parece bom poder tocar música, enviar mensagens e jogar sem trocar de aparelho. Mas toda vez que você pula de um app para outro, seu cérebro paga um “pedágio” em capacidade de processamento.

O psicólogo norte-americano David Meyer, professor da Universidade de Michigan, estima que a troca intensa entre atividades pode comprometer até 40% do tempo produtivo do cérebro.

A mudança constante para uma nova função, aparentemente mais atrativa que a anterior, também está relacionada ao ‘loop da dopamina’. Seu cérebro se interessa por uma nova atividade em busca de algo prazeroso, que vá liberar mais dopamina e renovar a sensação de bem-estar.

Só que a interrupção de uma atividade possui efeitos negativos. Isso injeta doses de cortisol, o que eleva os níveis de estresse, segundo estudos do endocrinologista e professor de pediatria na Universidade da Califórnia Robert Lustig.

A alternância de tarefas vai tornando as pessoas mais ‘rasas’ por não conseguirem fazer associações mais profundas

Cristiano Nabuco, psicólogo e coordenador do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP)

Quero um pote de biscoito, imediatamente

Atire o primeiro like quem nunca passou por isso: você posta algo nas redes sociais e, segundos depois, surge na tela do seu celular uma resposta, em forma de “curtida”, comentário ou novos seguidores. Bom, né?

Os especialistas chamam isso de gratificação imediata, e seu efeito é um dos mais preocupantes, pois leva a um desequilibro emocional.

“Isso faz com que a gente perca a capacidade de se dedicar a uma coisa cuja gratificação vai demorar muito a chegar”, explica Marília Zaluar Guimarães. “As pessoas acostumadas a essa rapidez do smartphone não conseguem lidar com a frustração diante da espera por uma resposta. Ou passam a repudiar atividades que não recompensem imediatamente o esforço empreendido.”

E, por enquanto, somente uma tecnologia é capaz de dar esse nível de gratificação em tempo real, onde quer que você esteja: o celular. É o feedback portátil, que faz parte de você, resume Morya.

Mas, vamos deixar claro que apesar de bagunçar sua cabeça de diversas formas, o smartphone é uma ferramenta revolucionária. Para os especialistas consultados por Tilt, o aparelho ampliou o poder de comunicação, de acesso a informação e colocou na mão de cada um uma grande capacidade computacional.

“Tem gente que diz que o celular tira o treinamento do cérebro, que faz mal”, analisa Morya. “Pode fazer, se você deixar de usá-lo para funções mais complexas. O celular é uma ferramenta aliada: você pode deixar funções corriqueiras para fazer nele e usar seu cérebro em atividades mais complexas.”

Direção de Arte: Suellen Lima; Edição: Fabiana Uchinaka; Ilustração: Eryk Souza; Infografia: Elias Fernandes; Motion Design: Daniel Neri.

Fonte: https://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/como-o-smartphone-muda-seu-cerebro/index.htm